segunda-feira, 9 de abril de 2007

IRAQUE


O legado de Faluja

A retórica ocidental de apatia não deveria cegar-nos para a nossa obrigação de enfrentar atrocidades

por Jonathan Holmes [*]

Pe�a 'Faluja', a estrear em Londres. Rana Al-Aiouby estava a arriscar a vida entregando remédios essenciais aos feridos na cidade iraquiana de Faluja quando testemunhou, em primeira mão, os efeitos da utilização de armas químicas pelas tropas estado-unidenses. Apesar de serem proibidas por vários tratados internacionais e pelas Convenções de Genebra, o fósforo branco e um derivado do napalm foi utilizado indiscriminadamente sobre a população civil de uma cidade da dimensão de Edinburgo durante o ano de 2004.

"Percebi alguma coisa no jardim e era um corpo, mas eu não podia realmente reconhecê-lo e ele parecia realmente mau – era um corpo com a cor verde, e eu nunca vira isto em toda a minha vida, e o meu trabalho é tratar de corpos mortos".

Poucas pessoas sabem acerca dos crimes cometidos durante os dois sítios de Faluja – Operation Vigilant Resolve, lançada três anos atrás, e Operation Phantom Fury, no mês de Novembro seguinte – em decorrência do que 200 mil pessoas tornaram-se refugiados. Não há números oficiais para mortes de civis.

Face a repetidas verificações independentes, as forças estado-unidenses agora reconheceram a utilização de armas químicas, mas ainda assim não há qualquer clamor internacional de protesto e nem resposta oficial (sem falar em condenação) de qualquer governo das Nações Unidas. Os EUA derrubaram um regime enquanto supostamente investigavam armas fantasmas de destruição maciça, apenas para utilizar tais armas sobre as populações civis recém "libertadas". A fria hipocrisia de tais acções é ultrapassada apenas pela sua perversidade extravagante.

Setenta artigos das Convenções de Genebra foram infringidos nos dois meses separados de sitiamento de guerra. Apesar dos apelos para abolir as convenções por líderes conservadores passados e actuais, como Michael Howard e David Cameron dentre outros, elas permanecem como redutos essenciais contra as tácticas intimidatórias dos poderosos, e um índice pungente da crescente impunidade do projecto neocolonial. Sua característica é que aos inocentes, os fracos, os derrotados e os feridos seja concedida toda a protecção possível em temos de conflito. A característica do governo dos EUA é que os fracos e inocentes são um obstáculo para a aquisição de poder e, ocasionalmente, uma oportunidade para a expansão do lucro.

Ao escrever minha peça Faluja, a qual entrelaça relatos dos testemunhos oculares de Rana e muitos outros presentes durante estes ataques, o que me espantou foi a simetria entre o testemunho de soldados americanos e aqueles das suas vítimas. "Sim, nós napalizámos aquelas pontes", disse o coronel Randolph Alles, do Marine Air Group 11, numa entrevista a James Crawley do San Diego Union-Tribune. "Os generais amam o napalm". Os rapazes sobre o terreno não se incomodam mais em disfarçar, tão confiantes estão os seus mestres em que o protesto, se acontecesse, seria abafado e ineficaz.

A retórica da impotência, tão prevalecente no ocidente, tem sido demasiado efectiva e estamos demasiado cansados para sermos surpreendidos, e menos ainda para actuar. Tal como com a proposta abolição das Convenções de Genebra, o que está em causa é uma espécie de fadiga, um senso de que a acção ética é simplesmente demasiado penosa no nosso complicado e distraído mundo. Mas a ironia é que como membros de uma sociedade europeia privilegiada, com riqueza material sem paralelo, tempo de lazer, tecnologia de comunicações e oportunidade intelectual, estamos numa posição sem precedentes para influenciar, não mais dependentes dos votos e da carteira para o exercício de protestar. Nunca estivemos melhor equipados como indivíduos para fazer um impacto no mundo; isto é óbvio a partir das enormes mudanças que estamos a fazer para o ambiente. Todas as pessoas que entrevistei para Faluja e cujo testemunho é reproduzido literalmente, desde generais a clérigos e civis iraquianos, reconhecem isto. Agora somos todos participantes.

Muitos dos iraquianos que encontrei repetiram o mesmo slogan: "Faluja agora é o Iraque, e o Iraque é Faluja". Três anos volvidos, as pessoas retornaram ao que resta dos seus lares, mas a vida não é menos perigosa. Faróis de investigação, despejos e ataques súbitos são comuns, a cidade não tem infraestrutura real, pouca água limpa e quase nenhum cuidado de saúde, e a guerra de facções é uma ocorrência diária. Ainda é muito difícil a ajuda chegar à cidade ou aos observadores verem quão dura é a vida para os residentes.

O que é certo é que o dano feito não foi reparado e nenhuma reparação está a caminho, apesar de promessas das autoridades interinas iraquianas. A cidade está num estado caótico, e muitas pessoas sentem que foram mais uma vez esquecidas. As atrocidades de três anos atrás tornaram-se emblemáticas do sofrimento de uma nação; a menos que respondamos com simpatia o emblema solidificar-se-á num símbolo de resistência e reacção, e nós colheremos o vendaval mais cedo do que pensamos.

04/Abril/2007
[*] Escritor, director de teatro e académico. Sua peça Faluja será lançada no Old Truman Brewery, em Londres, dia 1 de Maio.

O original encontra-se em http://www.uruknet.de/?p=m31879&hd=&size=1&l=e


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Nenhum comentário: