MASSERA
Ópera Mundi - "Como se descreve alguém que foi responsável por milhares de assassinatos, pessoas desaparecidas e torturados? Isso é o que Emilio Eduardo Massera representa para a Argentina", diz Enrique Fukman, representante da Associação de Ex-Presos Desaparecidos do país sobre o almirante que foi um dos principais símbolos da ditadura militar que marcou a história argentina com sangue entre 1976 e 1983.
Morto nesta segunda-feira (8/11), aos 85 anos, devido a uma parada cardiorrespiratória, Massera foi um dos protagonistas do golpe de estado de 1976, por meio da junta militar formada por ele, Jorge Rafael Videla (Exército) e Orlando Ramón Agosti (Força Aérea).
Com a chegada dos militares ao poder, o país submergiu em um sanguinário regime, que deixou um aprioximadamente 30 mil desaparecidos. E muitas sequelas. Preso aos 22 anos, quando militava no movimento guerrilheiro Montoneros, Fukman foi um dos poucos sobreviventes da ESMA (Escola de Mecânica da Armada), um dos principais centros clandestinos de prisão e tortura do país, do qual Massera foi idealizador e responsável direto. Calcula-se que, das 5.000 pessoas que passaram pelo local, apenas 300 saíram vivos.
Mantido encapuzado e acorrentado nos seis primeiros meses e obrigado a trabalhar nos nove que antecederam a sua liberação, ele afirmou ao Opera Mundi que se sentiu frustrado ao saber que o repressor morreu, sem pagar por muitos dos crimes cometidos.
"Nos indigna saber que quem devia ter morrido na cadeia passou o resto de seus dias em casa. A Justiça e os indiferentes governos que sucederam a ditadura são os grandes responsáveis por esta impunidade", afirma o ex-desaparecido.
De fato, o principal articulador das atividades de tortura e extermínio da ESMA não ficou recluso por muito tempo, como aponta Fukman. Após a reconstrução da democracia argentina, em 1983, Massera foi julgado e condenado à prisão perpétua por homicídios, torturas, privações ilegais de liberdade e roubos. Era 1985, e ele declarou: "Não vim me defender. Ninguém tem de se defender por ter ganhado uma guerra justa".
Pena aliviada
Condenado e destituído das Forças Armadas, o ex-almirante não perdeu a oportunidade de provocar os juízes: "Estou em uma posição privilegiada. Meus juízes têm a crônica, eu tenho a História. E é lá onde se escutará o veredicto final", afirmou.
Em comunicado emitido nesta terça-feira (9/11), as Avós da Praça de Maio lamentaram que a pena não tenha sido cumprida integralmente: "Ele não chegou a cumprir cinco anos. Apesar das graves e provadas acusações contra ele, o então presidente Carlos Menem o absolveu." Menem promoveu, em 1990, um indulto, que beneficiou Massera e outros membros de juntas militares e chefes da polícia da Província de Buenos Aires, além do dirigente montonero Mario Eduardo Firmenich.
Roubo de bebês
Em 1998, foi decretada sua prisão domiciliar preventiva, pelo roubo de bebês de desaparecidos e mortos pela ditadura. O processo, no entanto, foi suspenso em 2002, quando o militar sofreu um derrame cerebral. Três anos depois, escapou mais uma vez da Justiça, quando foi declarado "insano mental" e "incapaz por demência". Massera sofreu um acidente cardiovascular em abril deste ano e já se encontrava em estado vegetativo quando morreu.
"Se Massera sabe de alguma coisa, levará para a tumba", havia previsto seu advogado, também falecido, Pedro Bianchi. Massera nunca deu declarações sobre as acusações que lhe foram dirigidas, entre elas ordenar a morte de três Mães da Praça de Maio (que se reuniam em frente à sede do governo argentino, em Buenos Aires, para reivindicar a localização de seus filhos), atiradas de um avião no Rio da Prata, coordenar o desaparecimento milhares de pessoas cujos corpos nunca foram encontrados e permitir o roubo de centenas de bebês nascidos nos porões da ditadura e adotados ilegalmente por famílias ligadas ao regime - muitos desses bebês, hoje com mais de 30 anos, ainda desconhecem sua verdadeira identidade.
Nascida na maternidade clandestina da ESMA e filha de desaparecidos, a presidente da comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados, Victoria Donda, foi a 78ª neta encontrada pelas Avós da Praça de Maio. Para ela, a morte de Massera sem que ele tenha cumprido uma pena justa "representa a ineficiência do estado para levar tranquilidade e paz à sociedade". Donda afirma que os julgamentos são lentos: "Em sete anos temos pouco mais de 50 sentenças ditadas, de cerca de 30 mil casos", queixa-se.
Massera "é o símbolo dos assassinos que não conseguimos terminar de julgar, apesar da condenação e repúdio da sociedade argentina", declara.
As Avós da Praça de Maio também lamentaram que o repressor tenha morrido sem pagar pelos crimes. "Massera gozou até o final de sua vida de todas as garantias que dá o estado de direito, inclusive aos assassinos. As mesmas garantias que ele negou às suas vítimas no apogeu do terrorismo de estado", afirmaram em comunicado.
Perversidade da ditadura
O juiz federal argentino Daniel Rafecas, responsável pela investigação dos crimes de lesa humanidade cometido pelo Exército e pela Aeronáutica durante a ditadura, afirma que a paralisação do processo de Massera é garantida legalmente, devido ao seu grave estado de saúde que o impedia de enfrentar um processo penal. "É um direito constitucional e que a Justiça do Estado de Direito deve respeitar, seja quem for o acusado".
Rafecas, no entanto, é categórico ao reconhecer a responsabilidade do almirante: "Ele encarnou os aspectos mais obscuros e perversos da ditadura militar argentina", diz em relação à criação e gestão da ESMA e "à submissão de boa parte dos oficiais a se envolver com ele". "Além disso, explorou perversamente os prisioneiros para objetivos messiânicos de continuidade política de seu 'projeto' de país, no estilo de Heinrich Himmler, comandante da SS, após a advertência da derrota do regime nazista por parte dos aliados", classifica.
Massera ficou meses respirando em uma cama ortopédica no Hospital Naval de Buenos Aires. Sua morte simboliza a diminuição da probabilidade de que muitas das lacunas abertas deixadas sobre o período da repressão argentina sejam preenchidas.
Para Marcelo Borrelli, autor do livro El diario de Massera. Historia política y Editorial de 'Convicción': la prensa del Proceso, uma das explicações do uso de uma repressão tão ferrenha era a debilidade que o almirante reconhecia em si: "Das três forças, a Marinha era a que tinha menos poder. A presidência era de Videla, que era chefe do Exército", justifica. Segundo o pesquisador, a ESMA era o que lhe dava força: "Ele utilizou este centro para seu projeto político, para ganhar na disputa com Videla, para ganhar mais poder".
Em 1978, Massera renunciou ao cargo de chefe da Marinha para alimentar suas ambições eleitorais: fundou o partido político Democracia Social e confessou o desejo de ser o herdeiro do ex-presidente Juan Domingo Perón, "ir além do terrorismo de Estado e ser a máscara da reconciliação nacional."
Como plataforma de apresentação de suas posições ideológicas ao público, criou o jornal Convicción, inicialmente um boletim da Marinha, que passou a ser distribuído em bancas com uma tiragem de 25 mil exemplares e circulou até 1980.
A armadilha das Malvinas
Ao mesmo tempo, articulava apoios, buscando uma aproximação do peronismo e colocando "armadilhas" para o colega do Exército. "Ele tinha intenções políticas, sabia que, para ser um líder de massas na Argentina, tinha que ser peronista. E propôs a Videla a recuperação das Malvinas. Sabia que a ação era politicamente inviável naquele momento, mas que os generais do Exército não ficariam satisfeitos com uma resposta negativa".
Borrelli não economiza adjetivos como "contraditório", "cínico" e "sinistro" para descrever o repressor e admite que suas investigações o levaram a conhecer um perfil carismático, sedutor e mulherengo do militar.
"Ele quis usar estas características na política porque acreditava que contrastavam com a do militar comum, chato e austero. Ele chegou a sair em propagandas políticas achando que a sociedade poderia começar a cobiçá-lo", diz. "Com a prisão perpétua sentenciada em 1985, no entanto, sua carreira política acabou".
A crônica passou, e o que dizem os historiadores sobre Massera? No prólogo do livro Massera, o genocida", biografia do almirante, o pesquisador Osvaldo Bayer escreveu: "Sem nenhuma dúvida, ele passará a ser na galeria dos argentinos o maior dos assassinos de toda a vida da República até o presente."
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